essa é a primeira publicação da série falo e ouço, onde concentrarei alguns comentários que costumam me vir a cabeça enquanto escuto obsessivamente música. não costumo ter maiores opiniões sobre as músicas em que ouvir uma vez é suficiente. então, por mais que aqui seja um espaço para dizer das canções que eu gosto de ouvir, será também o recipiente das minhas insatisfações com elas.
e esse primeiro tema me veio com o disco CAJU, da Liniker. claramente o trabalho dela com mais alcance na divulgação- entrevistas na TV e múltiplos shows esgotados em minutos pelo Brasil. seu quarto álbum se contarmos desde Remonta (2016), o segundo sem os Caramelows. não costumo ver muita relevância em exaltar números de sucesso, mas já deixo claro que esse aí parece que pegou mais que os anteriores. não sei se por ser, de fato, um outro caminho sonoro, mais robusto, por ser um disco diferente dos demais, ou simplesmente por estarmos vendo uma Liniker com uma carreira mais bem organizada e estabelecida.
de qualquer forma é um discão, extenso como um todo- principalmente por apostar em longas músicas, com grandes arranjos instrumentais e finais estendidos. a primeira audição já me deu uma impressão que se confirmaria nas demais: a ambição me agrada. de se fazer grande nas propostas, de não acabar as faixas antes de encaminhá-las pra lugares diferentes de onde começaram; por não se limitar esteticamente aos vícios do pop, Liniker foi capaz de se encontrar melhor do que nunca com as cordas, os metais, e com as múltiplas estéticas que acompanham bem, de modo geral, cada uma das músicas
não sou particularmente um defensor de que um disco que explora múltiplos gêneros e suas convenções será necessariamente um bom disco. mas se for bem feito, como em Caju, longas obras ganham fôlego. o equilíbrio entre identidade estética (que Liniker desenha com melodias) e as variações intra e entre as faixas (de dinâmica, de sonoridade, de tom)- isso sim ajuda me ajuda a apontar um bom disco.
numa definição desse tipo, Caju chegou e ficou comigo como um dos sons que mais me pegou na música esse ano. o que, sendo honesto, não representa grandes coisas já que tenho percebido a cena de música brasileira meio nivelada por baixo. os nichos que são cada vez mais nichos criam suas tendências e algumas coisas um pouco melhores aparecem quando eles baixam a guarda pra se misturar. com os nichos pelo menos cada um faz o seu.
Liniker tem rompido algumas fronteiras de nicho. acompanho religiosamente tudo que ela lança desde a sessão ao vivo no youtube, ajudei no financiamento coletivo do Remonta e fui ao show de todos os discos desde então. 8 anos depois, ela soa maior e melhor, mais confiante e mais complexa como artista.
particularmente, achei notável a evolução da sonoridade da Liniker depois de sua separação da banda-base. a liberdade de apostar em novos instrumentistas e produtores é a principal responsável por tirar a carreira da cantora de um momento, ligado aos dois discos com os Caramelows, em que os discos simplesmente não faziam justiça ao impacto que ela tinha ao vivo. não sei se era de fato a banda, mas os shows mais recentes são bem mais coesos e impressionantes do que os do começo da carreira.
agora, as letras não parecem ter mudado muito de lá pra cá. foram 80 anos em 8 no Brasil de 2015 pra cá e a impressão que dá é que o investimento feito no som não foi feito pra sua poética como compositora. no disco desse ano, Liniker aponta pra um tema muito simbolicamente associado ao contemporâneo: as elaborações possíveis de amor próprio e a dificuldade de se relacionar, tudo isso no contexto da voz de uma travesti preta, a primeira imortal na Academia Brasileira de Cultura.
a grandeza da proposta se concretiza na forma como ela fala do disco. a consciência que Liniker tem sobre o processo de produção musical, e até a conceituação poética da obra se engrandece com a forma como ela elabora sobre o que é amor para uma cantora bem-sucedida, o amor pra uma travesti brasileira, para um corpo preto- tudo isso aparece com clareza em suas entrevistas; e ganha força com um disco desse nível.
agora, olhando apenas pro disco, o que as letras nos dizem? a tônica geral da obra parece ser a busca por alguém que mereça viver com ela um amor. como já apontei, isso prevê falar das dificuldades contemporâneas de se relacionar, dos desencontros, das expectativas e decepções.
pra pensar sobre isso mais profundamente, escolhi algumas músicas que achei especialmente representativas. a faixa-título abre o disco deixando claro sobre o que é: esse alguém que mereça. e aí as palavras apontam pra possivelmente a abordagem mais comum da música pop de cantoras brasileiras: a construção de uma autoestima que permita se libertar de ter baixas expectativas em relacionamentos. não me leve a mal, é certamente um tema com alta adesão do público, inclusive para além das bolhas da cena musical.
essa forma de escrever, que costumo chamar de autoexaltação, costuma ter dificuldade em acertar grandes frases, justamente por parecer que não sobram tantas que soem originais. é uma temática muito explorada em diversos gêneros e acaba por cair em clichês semelhantes. isso aparece numa espécie de questionário pessoal elaborado na letra de Caju, no “all those things that I deserve to hear” de So Special, no “sou mais que magia” de Febre, e em toda letra de Pote de Ouro.
aqui vale ressaltar que a crítica não passa, em nenhuma medida, por questionar a importância da construção de autoestima feminina (principalmente no recorte da cantora) diante de seus relacionamento. no entanto, aponto diretamente para a forma poética como a artista escolhe escrever sobre os temas, questionando a excessiva familiaridade que o discurso causa diante do contexto em que é até sobreutilizado. a sensação de “eu já ouvi isso antes” que pode chegar a um “ah, isso eu já conheço”. impressão que subestima a artista, claro.
outro vício comum que me chama atenção é, como forma de soar poético, falar de poesia. isso também é uma tendência que vai além da Liniker, mas está claramente em sua forma de escrever. e não é referenciar grandes poemas (acho que isso seria interessante), mas tematizar o próprio fazer poético, o ato criativo de escrever poemas ou canções como forma de tematizar a si mesmo.
“nas nuvens de um poeta” em Veludo Marrom, “mandar um poema daria o tom” em Ao Teu Lado, “uma rima diferente que eu não sei” em Papo de Edredom, “me tratar como se eu fosse uma nota rasa dessa melodia tão vulgar” em Popstar. e olhando os contextos de cada um desses versos, eles estão colados nessa forma de escrever muito presa à primeira pessoa, a falar muito em eu, mim, e aos versos assim conjugados. isso tem tudo a ver com o que chamei de autoexaltação, mas separo um pouco os feijões aqui.
a prevalência dessa perspectiva individual na poesia musicada eu associo mais a um forma geracional de se expressar que é muito permeada pela realidade social e pelas formas contemporâneas de se comunicar digitalmente. a lógica disso não é propriamente da música, mas estruturalmente social e relacionada com o individualismo capitalista, a lógica de aprimoramento pessoal, a vitória meritocrática sobre as injustiças do sistema e uma narrativização da própria trajetória que é mediada pela presença online e pelas lógicas de percepção subjetiva do digital.
e é nesse sentido é que escolhi Popstar como a faixa que melhor sintetiza o disco e minha crítica. um grande e detalhado arranjo que engrandece a canção, um final que se estende após a letra em seus instrumentais, e uma letra que facilmente seria cantada por uma artista menos original que a Liniker. a música fez o bingo dos vícios poéticos que citei, com mais de uma referência metalinguística e alguns dos elogios a si menos criativos do disco.
além disso, depois de literalmente citar uma mensagem de zap, surge uma dessas frases que poderiam ser um tweet duvidoso que viraliza só no instagram, um meme inserido na música (o que é cada vez mais comum): “no meu crossfit aprendi a malhar meu coração”. em discos de boa circulação no digital, aparecem referências quase direta à frases, lógicas e trocadilhos banais, próprios da forma de se comunicar em redes sociais. o que frequentemente significa memes que ficaram datados entre o tempo em que foram incluídos numa música e a quando, de fato, saíram pro público.
mas esse comentário sobre o disco que mais ouvi esse ano não poderia, sob hipótese alguma, terminar com essa frase que prefiro ignorar no contexto do álbum. por mais que os momentos líricos que questionei estejam distribuídos entre várias (boas) canções, acho que o disco encontra uma sequência especialmente interessante e rica a partir da quarta música.
a sensação que tive é que, até nisso, Liniker soube organizar o que produziu com tanto cuidado. após apresentar um pouco desse universo temático nas três primeira faixas, ela chega com o sempre inspirado Amaro Freitas e a dupla Anavitória em Ao Teu Lado. apesar de alguma insistência na metáfora do costurar, a música tem nuances instrumentais, um arranjo primoroso e belas texturas de voz do início ao fim. a letra no meio disso tudo quase fica vira um detalhe.
dali em diante, passando pela ótima Me Ajude a Salvar os Domingos até chegar em Papo de Edredom (com o timbraço de Melly), o disco se desenvolve em grandes músicas com letras mais ricas de possibilidade para interpretação. as referências ficam menos gratuitas e as descrições mais subjetivamente originais. o momento é um pouco cortado por Popstar, que apesar da letra ainda soa interessante. Febre vem depois e mostra um encaixe melhor da proposta da letra com seu arranjo, então acaba soando também como um grande momento.
o disco ainda tem momentos como a parceria com Tropkillaz que tem um final épico e digno de um grande disco que se encerra musicalmente ali. no fim vem um monólogo final que não me soa particularmente melhor que o restante do disco em suas apostas de linguagem, mas que por não ser exatamente uma música, preferi não analisar junto das demais.
meu destaque final fica para a antepenúltima do disco: Deixa Estar com Lulu Santos e Pabblo Vittar. uma faixa dançante, pop, talvez o melhor arranjo do álbum misturando as cordas e o gênero disco em grande estilo. até a participação de Lulu, que de início suspeitei que poderia ser despropositada, enriquece na textura do segundo verso (em que o arranjo vai ficando especialmente legal). pra coroar, Pabblo entra pra arrebentar com suas vozes de sintetizador e leva a música, e o disco, ao ápice.
Deixa Estar ainda soa perfeitamente de acordo com o tema geral do disco (“encontrei meu amor”), mas nos deixa bem mais livres pra adentrar o texto como quem explora um território familiar mas incerto. acho que é justamente disso que senti falta, ao longo do disco; dessa possibilidade de mergulhar no imaginário poético da compositora de novas formas. elas estão ali, ainda sim, porque a originalidade aparece justamente quando se deixa no ar as respostas, as explicações, e os significados. como ela mesmo diz nessa faixa, “só o mistério vai te guiar”, então é dele que a gente escolhe lembrar.
pra quem chegou até o fim, obrigado pela atenção. gosto muito do que Liniker tem feito em sua carreira e mal posso esperar pelo que ainda vem. se tiver ideias, apontamentos e discordâncias, deixa um comentários pra gente conversar :)